quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Fósforos - 2ª parte



....
Dera um pulo ao ouvir a coruja.
Tinha adormecido a ler o livro. Olhou as horas. Passavam das 20h.
Levantou-se meio estremunhado.
Olhou pela janela, ainda semi aberta, o campo lá fora. A casa de Júlia continuava ás escuras.
Fechou o resto do estore e dirigiu-se para a cozinha.
Na televisão um homem de óculos anunciava algo.
Aqueceu a comida - Esparguete à bolonhesa...um prato que apreciava.
Pôs um copo de sumo na mesa e sentou-se a olhar a televisão.
Lá fora a chuva tinha amainado, mas o céu continuava nublado como um torvelinho.
Sentia-se ligeiramente zonzo. Ele sabia o que era.
Dormir de tarde deixava-o assim. O corpo mole, pele ligeiramente viscosa, e uma espécie de ansiedade inconsciente.
Comeu lentamente, deixando-se por vezes absorver por alguma noticia na televisão.
Só quando acabou de comer é que refletiu sobre o estranho encontro.
No inicio tinha tido medo, depois calma, mas ficara uma estranha sensação. Tinha a perfeita noção que a sua casa se transformara - já não era pacata, agora era sombria, solitária e estranhamente movimentada pelas sombras, o vento, enfim o medo.
Tentou esquecer-se disso. Pôs o prato na máquina de lavar e mastigou um pedaço de chocolate.
Na televisão ia iniciar-se em momentos a série que queria ver.
Olhou as horas -21h.
A mãe devia estar a telefonar. Nesse momento o telefone tocou.
wow...parecia telepatia.
A mãe fez as perguntas habituais. Se tinha comido, se a escola correra bem, se fechara as janelas, se o pai já tinha chegado. Depois mandou um beijo e desligou.
Lembrou-se que a janela do quarto dos pais por vezes ficava aberta.
Correu para lá.
Abriu a porta de soslaio e olhou para o interior.
Nesse momento um trovão inundou o seu campo de visão. O quarto meio desarrumado, a janela aberta, os campos regados pela chuva e uma coruja do outro lado da janela.
Fechou com rapidez a janela.
Estranhamente a coruja nem se mexeu.
Ela olhava-o nos olhos.
Fechou também os estores e foi para a sala.
A meio do caminho no entanto algo o assustou. Assustou-se com o pensamento - E se o homem o tivesse seguido?
Pegou num velho bastão de baseball e revistou o quarto dos pais, o armário, depois o seu quarto, o guarda fatos, debaixo da cama, a casa de banho, a saleta. Nada.
Sentiu-se mais calmo. Era apenas a sua imaginação.
O programa que tanto queria ver estava já a começar.
Começou com um caso de um estranho rapto, de sinais misteriosos e vultos ligados ao mesmo evento.
O intervalo encontrou-o ainda mais nervoso.
Foi a casa de banho e espreitou o exterior. A chuva parara.
Saiu porta fora.
A casa de Júlia estava na mesma ás escuras. Sentiu-se nervoso...Algo se passara.
Pegou no telefone e ligou.
Nada....
Lembrou-se do telemovel. Finalmente Júlia atendera-o. Tinha ido ás compras com a mãe mas já estavam a caminho. Contou-lhes que em sua casa estava tudo ás escuras e ninguém atendera a chamada. Júlia estranhara também.
Continuou a ver os casos misteriosos na televisão. Sentia-se mais calmo.
Noites de chuvas, eventos estranhos, programas de crimes devia ser isso a razão da sua inquietação.
A certa altura uma forte luz inundou as vidraças da janela.
Um carro. Devia ser o pai, pensou.
Era Júlia e a mãe.
- Não há ninguém em casa, e há gavetas reviradas! - disse Júlia mal ele abria a porta de casa.
- Roberto, está cá a tua mãe ou o teu pai? - perguntou a mãe dela, também ligeiramente abatida.
- Não, a minha mãe esta noite trabalha, o meu pai tinha um biscate mas ainda não voltou.
- Viste alguém ali ao pé da nossa casa ou algum barulho?
- A única coisa que estranhei foi terem tudo apagado, normalmente têm as luzes sempre acesas! Por isso telefonei...
- Fizeste bem! Devem ter ido á minha irmã - desculpou-se. - Roberto a Júlia pode ficar contigo um bocado? Vou até Sarcedes ver se eles estão lá.
- Mãe fica aqui, se calhar é melhor chamar alguém!! - argumentou Júlia aflita.
Júlia que era tão racional, tão fria, tão adulta parecia agora uma criança, nervosa e aflita.
Parecia quase uma blasfêmia, mas Júlia estava muito bonita, os seus cabelos loiros, os olhos claros, os lábios carnudos.
- Deixa-te estar ai, não demoro!
Roberto aproximou-se e quase se sentiu mais velho que ela e puxou-a para dentro.
A mãe de Júlia pôs-se dentro do carro e rapidamente se afastou.
-Queres comer algo ou beber algo?
- Não...não tenho fome, estou nervosa!
- Sim, eu tambem...
Sentaram-se os dois no sofá. A série tinha terminado, mas ia iniciar-se outra de ficção.
- Deixas-me ligar para o meu tio Fernando?
- Claro!
Júlia marcou avidamente o número. Mas do outro lado não obteve resposta.
- Tens que te acalmar! Não és assim tão rica, e 3 pessoas não desaparecem assim. E pensa, nesta terriola nunca acontece nada!
Júlia pareceu acalmar-se um pouco.
Ele no entanto achava que tinha dito uma grande mentira. Nos outros dias talvez dissesse a verdade, mas hoje...o encontro com o estranho homem, o temporal, a série de televisão, a solidão e agora o caso da casa de Júlia não ter ninguém e haverem gavetas reviradas...tudo isso lhe dizia que algo se passava.
- Sabes Robbie, preciso de fumar.
Julia sacou da mala um maço de cigarros.
- Sei que isto não faz bem e que és muito novo, mas queres?
Noutra altura teria talvez recusado, mas a sua menção á sua idade, fê-lo responder afirmativamente.
- Óbvio que sim! Já fumei...
Ela olhou-o de esguelha, como se duvidasse.
- Claro, que já fumei! - voltou a reforçar.
De repente lembrou-se....
- Eu até tenho um pacote de fósforos.
Desenterrou o pequeno pacote do bolso. Lá dentro 2 fósforos permaneciam.
Ela deu-lhe um cigarro.
Então ele tirou o fósforo e tentou acende-lo. Bolas...aquilo não dava.
- Isso deve tar estragado, se calhar molhados...deixa-me tentar.
Uma chama vermelha acendeu-se.
- São fortes! - exclamou ela.
Acenderam ambos os cigarros e foram para a porta fumar.
Algures uma coruja piou.
- Tenho medo - disse ela enquanto fumava.
Ele também o tinha, mas apenas olhou o fósforo a apagar-se na água da chuva, e ficou silencioso.
De algum modo sentia que havia algo no ar...e não era música.

CONTINUA


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