domingo, 3 de janeiro de 2016

Sofrimento e Desejo



Nós, seres humanos, não queremos sofrer. Embora a felicidade seja o objectivo implícito de todos os actos, evitar o sofrimento é a nossa grande prioridade. Nada nos inspira mais terror do que o sofrimento e até a própria morte nos parece apetecível se acharmos que lhe põe termo.
(...)
Mesmo quem, de um modo geral, se considera feliz não está ao abrigo do sofrimento: quando não são os incidentes e os contratempos da vida, são as dificuldades familiares, as doenças ou as separações de entes queridos.
Em última análise, mesmo que tenhamos tido uma vida esplêndida, não podemos escapar ao inevitável sofrimento da morte.
O sofrimento alheio também nos incomoda. Incomoda-nos quando o presenciamos e nos deixamos tocar por ele. Incomoda-nos quando nos pomos no lugar dos outros e imaginamos o seu sofrimento. Incomoda-nos até indirectamente, mesmo que nos seja indiferente: as discussões dos vizinhos impedem-nos de dormir, as greves causam-nos contratempos, os conflitos sociais afectam a nossa qualidade de vida, a exclusão social, o consumo de droga, a pobreza material ou a miséria moral fazem com que sejamos enganados, roubados, agredidos.
(...)
Quando examinamos o que nos faz sofrer encontramos inúmeras causas. No entanto, na perspectiva de Buda, a causa mais profunda, raiz de todas as outras, é a que ele chamou de “ignorância”. Neste
contexto, ignorância tem uma conotação muito específica e refere-se a um erro de base na nossa interpretação do mundo. Para o Budismo, os fenómenos que nos rodeiam não têm a realidade que nós
lhes atribuímos, isto é, não são exactamente como nós os concebemos.
Buda disse que a nossa interpretação dos acontecimentos e dos fenómenos é comparável ao erro que se pode cometer ao avistar um pedaço de corda caído no chão e tomá-lo por uma serpente.
(...)
 Estudos recentes sobre o funcionamento do cérebro parecem apontar no mesmo sentido. A percepção visual − uma das nossas mais importantes percepções − não é apenas uma informação chegada do exterior, como geralmente imaginamos. As imagens que percepcionamos são, numa esmagadora percentagem, literalmente “projectadas” pelo nosso cérebro com base em experiências e memórias passadas.
(...) Buda significa “desperto” justamente porque a Iluminação do Buda foi um despertar do sonho da ignorância. Foi como lembrar-se, de repente, que estava dentro de um jogo e que, por isso, os fenómenos aparentes não podiam alterar nada de fundamental.
Há que realçar, porém, que não se trata de uma mera especulação intelectual ou de mais uma teoria. O que aconteceu a Buda foi uma mudança radical na qualidade da sua experiência da realidade, semelhante à que temos quando acordamos de um sonho. Como esse novo modo de experimentar a realidade era portador de uma imensa serenidade e permitia transcender o sofrimento, Buda decidiu ensiná-lo.
(...)
Todos sabemos que os fenómenos são regidos pelo movimento e pela impermanência, mas não nos relacionamos com eles nessa base. Duma maneira muito empírica, temos a sensação de que uns
objectos são fontes de prazer e outros de sofrimento, mas a realidade é outra. Tudo o que nos dá prazer pode causar-nos dor, e essa é apenas uma das formas como a impermanência se faz sentir.

Tsering Paldron, in A Alquimia da Dor

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