sábado, 6 de junho de 2015

Tédio


'' Normalmente oiço pequenos marulhares de agua nos meus ouvidos. Sei assim, sem sombra de dúvida, que me encontro perto do meu torvelinho emocional. Assim sendo, assim sentindo-me sento-me no meu sofá comprado nos anos 80 e de modelo dos anos 60, tiro da gaveta do armário da sala um maço de cigarros e fumo. Primeiro fumo rispidamente, como se tivesse apenas um minuto para inalar todo aquele fumo inebriante e intoxicante. Só depois, enquanto olho o vazio, tanto o físico como o emocional, é que vou notando quão lentas vão saindo as pequenas nuvens de alcatrão e nicotina que o meu próprio corpo expulsa.
De algum modo ao olhar o fumo percebo que não estava a controlar-me a mim mesma, nem sequer estava em mim. Onde estava?
Nesses momento uma náusea toma conta de mim - Que ando a fazer? O que tenho na minha vida senão vazio? O que espero para preencher a minha vida e dar-lhe uma direcção viável?
Levanto-me. Preciso de ir ao fundo. Agito-me qual Gena Rowlands no  filme A Woman under influence....
Ponho um disco no gira-discos. Um Debussy deprimente e cadavérico faz-se soar.
Corro a fechar as cortinas, ainda se ouvem as crianças e os jovens casais que numa soalheira tarde de Verão se divertem.
Olho o cigarro enquanto tento parar uma onda de raiva e tristeza que me obriga a semicerrar os olhos para impedir que uma lágrima de vitima escape.
Não penso sequer olhar-me ao espelho. Veria aquela mulher velha, acabada, de rugas, que ninguém quer. Aquela mulher respeitada e simpática que esconde a dor por detrás de uma máscara. Aquela vaca velha, puta de merda, que no fundo não sabe ser feliz.
Podia dizer que era a vida, o governo, a falta de emprego, a bestialidade da sociedade, o tédio, as doenças ou o que fosse. Estaria a mentir a mim mesmo. Sou eu a culpada disto tudo.
Vou buscar um copo á cozinha. Boa altura para beber aquele vinho insalubre que aquele primo idiota ofereceu há dois natais atrás.
Sabe a ranço. Alguns apreciariam bastante. Não sou filistina para tal.
Debussy cala-se. Como uma tormenta que cresce, surge uma gnossienne de Satie.
Outro filho da puta. Satie. Também outro acabado, de obras geniais nunca compreendidas, acabado numa casa velha, quase nas ruas da amargura, mas já morto, muito morto na solidão dos dias.
Olho para mim e para ele.
Já devem ter passado mais de 60 anos da sua morte. Pareco repetir o mesmo drama principesco - outras personagens, outras roupas, outras vidas e no fundo, o insípido é sempre insípido.
Bebo o resto do vinho no copo. Não quero mais.
Deito-me no sofá deixando que duas gotas dancem nos meus olhos, para lá e para cá.
Espero que o gato não se atreva a aparecer. Ele provavelmente terá melhor vida que a dona.
Retiro um livro daquela bela colecção de livros que comprei em Memphis. Destinos do mundo.
Locais a conhecer. Que mentira.
Podia ir até à China e estar lá sozinha. Eu iria comigo mesma. Se ao menos tivesse jeito para freira.
Rio.
Ergo-me-
Limpo os olhos.
Preciso de uma direcção. Preciso de me amar. Preciso de.....
Deito-me de novo, quase como se fosse atirada do alto do Big Ben.
Não tenho forças.
Um fogo arde dentro de mim. Não o deixo consumir por completo, nem o apago.
Deixo que passem pelos meus olhos todos os sítios que queria ir, os homens que queria conquistar ou simplesmente que me penetrassem vorazemente, até algumas mulheres com quem me divertiria. Deixo que passem pelos meus olhos tórridos romances que imagino, deuses e locais adormecidos, aventuras e reconhecimento social, orgias de vinho, sexo e risos. As férias em Saint Tropez, um cruzeiro no Mediterrâneo, crianças que aprendiam o bom que trago, enfim.....
São apenas ilusões. Um nada não pode aspirar a nada mais que nada.
Choro compulsivamente. Grito a mim mesma, a Deus, que mereço mais que isto. Que também quero ser feliz.
O som do marulhar dos ouvidos cessa ao mesmo tempo que vítreamente adormeço.
Talvez aí eu sonhe e viva.''

Onda 45, de Cacilda Duckles


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