quarta-feira, 30 de julho de 2025

Um mundo sedento de calor humano

 

(pintura de Patrick Ennis)

Hoje fui passear pelo parque após o jantar.
Estava uma noite quente e no parque corria uma leve brisa.
Dezenas de pessoas passeavam por aí - umas brincavam com filhos, crianças com crianças, a maioria dos adolescentes jogavam basquete ou andavam de bicicleta, uns quantos idosos e alguns casais apenas se sentavam a observar tudo isso e muitos outros deambulavam de um lado para o outro.
Senti que muitos esperavam algo. Os avós esperavam um abraço, o homem solteiro uma companhia e até as crianças outras crianças para brincar.

Enquanto passava surgiu-me uma frase de Erling Kagge quando fez a sua excursão ao Polo Sul - ''já me senti mais sozinho em festas do que aqui, no meio da natureza.''

Um dia destes escrevi algo no meu notebook - ''Perder-me parece ser o meu antidoto para o suicídio.''
E é verdade, sinto-me menos só quando estou só que muitas vezes em grandes eventos ou grandes multidões. 
Tenho em mim o desejo como escrevi um dia - ''Tocarei com a mão pelas searas, rebolarei na terra fresca, sentirei o pó das ruas, beijarei rostos e lábios, beberei, sorrirei, dançarei, chorarei. (...) Eu sei que vai doer. O estomago vai roncar. As pernas vao parecer metais ferrugentos, os pés vao abrir.....
Mas estarei a viver.''

Ás vezes olho para trás e apesar de tantos vazios, de tanto tempo perdido, consigo perceber que quando segui o nada, esta intuição, estes insights foi quando fui mais feliz. Apesar de olhar para tanta dor, tanto vazio na minha vida, vejo momentos divertidos.
Já chamei a policia a meio da noite em Itália em busca de ladrões imaginários, já vivi da bondade de desconhecidos, já me afastei das meias fedorentas do meu amigo numa viagem de bus de Sevilha, já mergulhei em aguas cristalinas, ja me embeicei, já tive experiencias de surpresa, dor, desespero e até de loucura. Já me embebedei sem beber vinho, já pedi em casamento no meio de risadas e brincadeiras, já dormi numa sala com centenas de pessoas, ou partilhar quarto a 3, já tanta coisa me aconteceu.

E o que percebi foi que quando me despojei do medo, quando deixei o meu eu ser quem ele é, quando me fiz a estrada a vida me deu bons abraços e boas aventuras. 

Somos seres bípedes e foi talvez o bipedismo e a diáspora humana que foram moldando a evolução humana, sempre entre um passo atrás e um para a frente.
Hoje vivemos vidas mais presas. Cada vez mais presos atrás de computadores, de aplicações de encontros, de tentarmos parecer o que não somos, de não perdermos, sempre frenéticos para chegar a lado nenhum.

Hoje sei e devia ouvir que como dizia Jesus -  Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á..... e talvez seja isso mesmo. Talvez precisemos de perder o nosso eu, ou pelo menos as construções sociais, mentais e de baixa auto-estima que criamos, as fortalezas que erguemos, as dores que escondemos.

Olho o mundo e vejo um mundo podre. 
Um mundo gelado de ódios e rancores, de nacionalismos ficticios e ansias de poder.
Vejo uma sociedade solitária.
Cada vez menos se cumprimenta, se diz olá, se ajuda um desconhecido ou mesmo um conhecido.
Queremos todos AMAR e amar MUITO mas ficamos todos fechados.

Estamos parados.
E quanto mais parados estamos menos calor geramos e recebemos.
Achamos que ali é nosso.
Deixamos de andar dois passos.
E parados gelamos.
E continuamos todos sedentos de calor humano.

Precisamos de arriscar. 
Ás vezes, um passo de cada vez............


sábado, 26 de julho de 2025

A Arte de escolher o caminho mais longo

 
Normalmente somos pessoas apressadas, mesmo quando não temos nada, nem ninguém á nossa espera.
Apanhamos o autocarro que vai pela via rápida e chega em Lisboa em 20 minutos, seguimos de metro que nos deixa quiçá no Saldanha em 12 minutos, despachamos o almoço numa sopa e sandes ou num Big Mac e matamos o tempo no telemóvel durante todas essas actividades.

Passamos o nosso tempo a ver o telemovel, a fazer scroll no Tiktok ou no instagram, a ver filmes, a ler, ou mesmo a dormir em última instância.

Eu, a não ser que haja pressa, ainda gosto de ir no autocarro lento que passa em todas as terras em vez do rápido. Talvez não veja nada realmente novo, talvez não seja uma viagem ''nova'' mas há sempre algo que ver. Mas mais que isso, gosto do tempo que demora o autocarro.
É muito estranho.
É como se aqueles 50 minutos fossem uma bolsa de ar onde posso fazer miríades de coisas - oiço musica, leio, vejo a vista, mas mais que isso, ponho os pensamentos em ordem.

Após o jantar gosto de caminhar. Comecei estas caminhadas para me ajudarem a perder peso, mas na verdade é que o movimento de caminhar, de ver o dia tornando-se noite, ver conhecidos e desconhecidos, passar por casas e ruas, me ajuda a pensar. Tomo o meu tempo!

Aprendi, quando fiz os dois caminhos de Santiago, que mais que o destino, é a viagem que interessa. Fiz amigos e conhecidos, tive aventuras, vi sítios magníficos, experiencias físicas e emocionais brutais, tive dores nos pés, bolhas e episódios de hipoglicemia, chorei, ri, abracei, sonhei.....

Diz Erling Kagge  no seu livro '' A Arte de Caminhar'' - '' a vida prolonga-se quando vamos a pé. Caminhar expande o tempo em vez de o fazer colapsar''.

Já me aconteceu no caminho de Santiago escolher um caminho diferente porque pensei que seria mais rápido. Resultado - andei meio perdido, por sítios difíceis, e demorei talvez tanto como se fosse pelo outro.

Há em nós um hábito ou um desejo, uma mescla dos dois, de fazer as coisas rapidamente - comer rapidamente, despachar os deveres rapidamente, ir beber um café com alguém mas ''rapidamente. Até mesmo mudamos o que já era rápido - lemos, vemos tv e filmes de um modo instantâneo e veloz. Já não precisamos de ir ao videoclube, podemos ter tudo num instante.
Até mesmo ver um filme ou serie tem outro tempo, podemos parar, ir ao wc, acelerar, ver tudo de seguida sem ter de esperar uma semana ou duas. 

No dia a dia usamos o telemovel para fazer scroll, passar, passar, ver um vídeo de minutos e acelerar.  Não tentamos FICAR PRESENTES, fugimos para o telemovel.
Fugimos do contacto com o outro, com a vida, enfim, fugimos  dos nossos próprios pensamentos e interioridade. 

Tenho a sensação que cada geração é mais rápida e impaciente que a anterior. Mais apressados e ao mesmo tempo, mais sós, mais deprimidos, mais solitários, mais tristes..............................

Antigamente para pesquisar algo tínhamos ler, investigar, procurar em livrarias, bibliotecas.
Depois ganhámos os motores de busca, o google...
Agora basta-nos a inteligência artificial...ela pesquisa, lê, procura e escreve por nós... ganhamos tempo para ...... termos mais tempo de nada.

Volto ao livro de Erling Kagge onde ele nos diz :

'' Tornar as coisas um bocadinho menos cómodas acrescenta uma dimensão extra à minha vida. Tanto quanto consigo lembrar-me,  há um diabrete á solta dentro de mim que me diz constantemente para escolher o caminho mais fácil : diz-me para dar um passeio mais breve do que o que planeei, para ir ao café em vez de visitar um amigo que está doente e para me levantar da cama mais tarde do que devia. Se, por exemplo, estivermos acostumados a usar o carro para nos deslocarmos, pode parecer muito penoso não o fazer. É simplesmente demasiado confortável.
  Seguir sempre as indicações dessa pequena voz parece uma forma de escapar do mundo e um desperdício das oportunidades que a vida nos apresenta. O filósofo Martin Heidegger assinalou que é bastante fácil para nós manter um relacionamento de servidão com esta espécie de persuasão diabólica. 
Se cedermos sempre,  isso pode significar que ficamos cada vez mais entrincheirados, com ambas as pernas rapidamente atoladas num pântano profundo e lodoso. Heidegger faz a distinção entre o que significa viver deste modo e o que é comandar a nossa vida. Os seres humanos deveriam, garante-nos o filósofo, estar dispostos a sobrecarregar-se de modo a poderem ser livres. Se escolhermos sempre o caminho mais fácil, a alternativa que oferece menos desafios terá sempre prioridade. As nossas opções estarão sempre predeterminadas, e não só viveremos sem liberdade como levaremos uma vida monótona.
     Há muitas coisas na nossa vida que têm um ritmo demasiado acelerado.  Caminhar é uma tarefa lenta. É uma das coisas mais radicais que podemos fazer.''

A Revolução Industrial libertou o homem e ao mesmo tempo o encarcerou. 
Vivemos no tempo das fake news, em que um video do tiktok a dizer que a terra é plana é aceite por muitos. 
Porquê?
Porque ao mesmo tempo que aceleramos, as nossas aprendizagens, as nossas memórias e a nossa construção interior não nos acompanha - ficamos burros, dementes e vazios.

Há uns três anos fui a Madrid fazer um workshop de 3 dias de Acupuntura Craniana. Decidi voltar de autocarro para Portugal. Apanhei o metro mas deixei o telemóvel na mochila. 
Ali ia eu, apertado no meu lugar, e sem fazer nada, a apenas observar. Todos, repito, todos á minha volta iam embeiçados, encantados, presos ao telemóvel, como se o mundo apenas se fizesse por ali, por aquele rectângulo de 15 por 6cm.

Apesar da televisão, do cinema e até da musica estarem também num loop vertical, descontrolado e acelerado, ainda podemos apreciar alguma arte.

A arte é talvez um antidoto do caminho mais rápido, da vertiginosa loucura da corrida. 
Talvez seja por isso que os museus têm bancos, para podermos ficar ali, a apreciar os quadros. 
Os livros também, ainda, são uma fonte de lentidão....felizmente. Ainda podemos ficar ali, a imaginar aquela história, aqueles locais fictícios, aquele momento intimo entre nós e as letras e a projecção mental que daí advém.

A arte de escolher o caminho mais longo é também a arte de voltar a deixar as pressas, a ansiedade, e apreciar a vida momento a momento. Algum escritor algures escreveu algo assim - voltar a apreciar cada nascer do dia, vendo cada dia de uma nova maneira, como uma página em branco.

Deixo-vos uma frase do filosofo Søren Kierkegaard que talvez resuma tudo: 




segunda-feira, 14 de julho de 2025

Viaje

 


Há dias em que tudo pesa: o corpo, os gestos, até a esperança.
Nesses dias, não procuro palavras — procuro som. Som que não me obriga a ser forte.

E então viajo. Não com malas, mas com alma.
Viajo até Ortigueira, onde nunca estive… mas onde algo em mim parece já ter vivido.

Lá, o céu não grita — apenas observa.
As árvores não apontam — apenas acolhem.
E o mar não julga — apenas escuta.
E a areia inunda os meus pés tapando-os como o meu sofrimento.

É nesse som que me refugio.
Nas notas longas de Alberto Iglesias, encontro abrigo.
Como se a música dissesse:
“Não precisas ser mais do que és agora. Estar triste é também uma forma de estar vivo.”


Caminho até a Serra do Socorro

 14km separam a minha casa do alto da Serra do Socorro. Há muito tempo que queria ir até lá....se tinha feito 118km em 6 dias no Caminho de ...